Coluna Alimentação Além do Prato
O mito do Ano Novo
Todo começo de ano traz algo legítimo e bonito. Uma sensação
de novo ciclo, de fôlego renovado, de vontade de fazer diferente. O calendário
vira e, com ele, nasce um espaço simbólico para rever escolhas, reorganizar
prioridades e imaginar caminhos possíveis. Esse movimento não é ingenuidade.
Ele pode ser um aliado importante.
O cuidado começa quando esse impulso vira reflexão e não
apenas promessa. Porque embora o Ano Novo seja, sim, uma oportunidade, o corpo
não reconhece datas comemorativas. Ele não entende réveillon, fogos ou
resoluções escritas à meia-noite. O corpo carrega o ano inteiro consigo.
Carrega as noites mal dormidas, os períodos de estresse, as rotinas apertadas,
mas também os cuidados, as tentativas e os pequenos ajustes que foram
possíveis.
O mito do Ano Novo aparece quando esse novo ciclo é
confundido com um reinício absoluto. A ideia de que janeiro é uma página em
branco. E não é. Janeiro é continuação. É consequência. É o corpo respondendo
ao que foi vivido antes, não apenas ao que foi prometido depois.
Isso não significa desperdiçar o gás do começo do ano. Pelo
contrário. Ele pode e deve ser usado. Mas com cuidado. Quando esse impulso vira
metas distantes demais, mudanças radicais ou planos que ignoram a vida real,
ele se esgota rápido. O que começa empolgado termina pesado.
Na prática, saúde não se constrói em viradas bruscas. Não
nasce de listas longas nem de regras rígidas. O corpo responde melhor a metas
possíveis, a ajustes pequenos, a escolhas que cabem no dia a dia. Responde à
constância viável, não à perfeição idealizada.
Como nutricionista, vejo isso todos os anos. Pessoas cheias
de boa vontade, motivadas, informadas, mas que montam projetos de janeiro que
não sobrevivem a fevereiro. Não por falta de disciplina, mas porque o plano não
conversa com a rotina, com o trabalho, com o cansaço, com a vida como ela é.
Janeiro costuma vir acompanhado de uma fome de controle.
Dietas restritivas, tentativas de compensar excessos, vontade de apagar o que
ficou para trás. Esse movimento raramente nasce do cuidado. Na maioria das
vezes, nasce da culpa. E a culpa até empurra, mas não sustenta.
Talvez o convite deste novo ano não seja fazer tudo
diferente de uma vez, mas olhar para frente sem romper com o que já vinha sendo
construído. Ajustar o que não funcionou. Simplificar. Tornar mais possível.
Entender que cuidar do corpo não é um projeto anual, nem um evento pontual. É
um processo que atravessa semanas boas, semanas difíceis, escolhas acertadas e
outras nem tanto.
Aproveitar o início do ano como marco é válido. Ele ajuda a
organizar intenções. Mas a continuidade nasce quando cada dia passa a ser visto
como um dia oportuno. Não só janeiro. Não só segunda-feira. Não só depois do
feriado.
Quando o mito do Ano Novo perde força, algo melhora. O
cuidado deixa de ser heroico e passa a ser cotidiano. Menos promessas
grandiosas, mais presença diária. Menos cobrança, mais compromisso possível.
O Ano Novo pode marcar o começo de um ciclo. Mas a saúde se constrói mesmo é na soma dos dias comuns. E talvez essa seja a forma mais honesta de atravessar o ano que começa. Usar o impulso para começar, sim, mas escolher, todos os dias, continuar.
Marina Rocha Luciano é nutricionista clínica esportiva,
formada pela UNICAMP (Universidade de Campinas) e com pós-graduação pela USP
(Universidade de São Paulo). Atua com foco na promoção da saúde e qualidade de
vida, melhora da composição corporal e da performance esportiva. Por meio de
uma nutrição com propósito, respaldada na ciência, busca promover autonomia
alimentar com estratégias individualizadas, eficazes e sustentáveis. Atende na
clínica Centerclin, em Sumaré.

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