Colunas
Marina Rocha Luciano é nutricionista clínica esportiva e atua na promoção da saúde e qualidade de vida

Coluna Alimentação Além do Prato

O mito do Ano Novo

Todo começo de ano traz algo legítimo e bonito. Uma sensação de novo ciclo, de fôlego renovado, de vontade de fazer diferente. O calendário vira e, com ele, nasce um espaço simbólico para rever escolhas, reorganizar prioridades e imaginar caminhos possíveis. Esse movimento não é ingenuidade. Ele pode ser um aliado importante.

O cuidado começa quando esse impulso vira reflexão e não apenas promessa. Porque embora o Ano Novo seja, sim, uma oportunidade, o corpo não reconhece datas comemorativas. Ele não entende réveillon, fogos ou resoluções escritas à meia-noite. O corpo carrega o ano inteiro consigo. Carrega as noites mal dormidas, os períodos de estresse, as rotinas apertadas, mas também os cuidados, as tentativas e os pequenos ajustes que foram possíveis.

O mito do Ano Novo aparece quando esse novo ciclo é confundido com um reinício absoluto. A ideia de que janeiro é uma página em branco. E não é. Janeiro é continuação. É consequência. É o corpo respondendo ao que foi vivido antes, não apenas ao que foi prometido depois.

Isso não significa desperdiçar o gás do começo do ano. Pelo contrário. Ele pode e deve ser usado. Mas com cuidado. Quando esse impulso vira metas distantes demais, mudanças radicais ou planos que ignoram a vida real, ele se esgota rápido. O que começa empolgado termina pesado.

Na prática, saúde não se constrói em viradas bruscas. Não nasce de listas longas nem de regras rígidas. O corpo responde melhor a metas possíveis, a ajustes pequenos, a escolhas que cabem no dia a dia. Responde à constância viável, não à perfeição idealizada.

Como nutricionista, vejo isso todos os anos. Pessoas cheias de boa vontade, motivadas, informadas, mas que montam projetos de janeiro que não sobrevivem a fevereiro. Não por falta de disciplina, mas porque o plano não conversa com a rotina, com o trabalho, com o cansaço, com a vida como ela é.

Janeiro costuma vir acompanhado de uma fome de controle. Dietas restritivas, tentativas de compensar excessos, vontade de apagar o que ficou para trás. Esse movimento raramente nasce do cuidado. Na maioria das vezes, nasce da culpa. E a culpa até empurra, mas não sustenta.

Talvez o convite deste novo ano não seja fazer tudo diferente de uma vez, mas olhar para frente sem romper com o que já vinha sendo construído. Ajustar o que não funcionou. Simplificar. Tornar mais possível. Entender que cuidar do corpo não é um projeto anual, nem um evento pontual. É um processo que atravessa semanas boas, semanas difíceis, escolhas acertadas e outras nem tanto.

Aproveitar o início do ano como marco é válido. Ele ajuda a organizar intenções. Mas a continuidade nasce quando cada dia passa a ser visto como um dia oportuno. Não só janeiro. Não só segunda-feira. Não só depois do feriado.

Quando o mito do Ano Novo perde força, algo melhora. O cuidado deixa de ser heroico e passa a ser cotidiano. Menos promessas grandiosas, mais presença diária. Menos cobrança, mais compromisso possível.

O Ano Novo pode marcar o começo de um ciclo. Mas a saúde se constrói mesmo é na soma dos dias comuns. E talvez essa seja a forma mais honesta de atravessar o ano que começa. Usar o impulso para começar, sim, mas escolher, todos os dias, continuar.

Marina Rocha Luciano é nutricionista clínica esportiva, formada pela UNICAMP (Universidade de Campinas) e com pós-graduação pela USP (Universidade de São Paulo). Atua com foco na promoção da saúde e qualidade de vida, melhora da composição corporal e da performance esportiva. Por meio de uma nutrição com propósito, respaldada na ciência, busca promover autonomia alimentar com estratégias individualizadas, eficazes e sustentáveis. Atende na clínica Centerclin, em Sumaré.

Deixe um comentário