A fome no Brasil é um problema político’, afirma Bela Gil em Hortolândia

A chef de cozinha natural, apresentadora, filha do cantor e compositor Giberto Gil, defende a reforma agrária como uma das saídas para garantir alimentação saudável para todos

Hortolândia recebeu, nesta semana, a visita ilustre de Bela Gil, a famosa chef de cozinha natural e apresentadora, que percorre Brasil afora levando informação sobre alimentação saudável e sustentável. Mais que ensinar a fazer pratos vegetarianos saborosos, com aproveitamento total dos alimentos, Bela enxerga na culinária uma ferramenta de transformação pessoal e social.

Em entrevista exclusiva ao Tribuna Liberal, antes da palestra que ministrou, quarta-feira (27/04), no evento de aniversário de 15 anos do Programa Banco de Alimentos, realizado pela Prefeitura, a filha caçula do cantor e compositor Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura, membro da Academia Brasileira de Letras, falou sobre o sonho de viver num país onde todos os brasileiros tenham acesso à comida de qualidade.

Bela Gil nasceu numa família com talento para música. Mas nunca quis saber de cantar. Aos 18 anos, conta que percebeu uma grande transformação na sua vida ao tirar do cardápio alimentos poucos saudáveis. A partir daí foi estudar gastronomia e nutrição, especializou-se em culinária natural, é sucesso no canal pago GNT com seus programas que ensinam preparar refeições vegetarianas, como o Bela Cozinha, se tornou ativista da boa alimentação, é escritora. Também conquistou milhões de seguidores nas redes sociais e transformou a arte da cozinha natural em empreendedorismo ao abrir o restaurante vegetariano Camélia Òdòdó, na Vila Madalena, em São Paulo.

Politizada, a baiana de 34 anos, vice-presidente do Instituto Brasil Orgânico (IBO), casada com o empresário João Paulo Demasi, mãe da Flor e do Nino, dá um recado: “é preciso o aparato do Estado para que as pessoas tenham acesso à alimentação. A fome no Brasil não é um problema técnico, é político”. Leia a entrevista:

Tribuna Liberal: Bela, você defende a democratização da alimentação e acesso à comida saudável para todos. Como é falar sobre alimentação num país que voltou a figurar no mapa da fome, com 20 milhões de pessoas sem acesso a refeições básicas?

Bela Gil: A questão da desigualdade é algo estrutural, histórico no País. Quando a gente fala em democratização da alimentação, precisamos entender que a nossa comida vem da terra. A gente precisa plantar para comer. E somos um dos países com maior concentração de terras. Então, enquanto não tiver um reforma agrária, uma distribuição mais justa da terra, a gente vai viver essa realidade. Em primeiro lugar é preciso combater a desigualdade social. Isso é fundamental para que todos tenham a acesso a uma boa alimentação. As pessoas precisam ter dinheiro para comprar comida. A gente fala de alimentação fresca, comida caseira e, muitas vezes, as pessoas não têm oportunidade de comer esses alimentos por falta de dinheiro. Eu acredito que a solução do problema está no combate à desigualdade social e na reforma agrária, que a gente precisa urgente. A fome no Brasil não é um problema técnico, é político.

Nesse sentido, como você avalia a contribuição de Programas como o Banco de Alimentos, criado no governo Lula, entre as ações de combate à fome no País?

Esse programa tem um papel muito importante no sentido de facilitar o acesso das pessoas a alimentos mais saudáveis. A gente precisa trabalhar dentro da sociedade não só a nossa mudança individual em relação a buscar conhecimento e fazer escolhas melhores na hora de consumir os alimentos. A gente precisa também do aparato do Estado, de políticas públicas que facilitem esse acesso à comida. Então, acredito que o Programa Banco de Alimentos é fundamental para que a gente tenha mais pessoas seguras em relação à alimentação.

Além do Poder Público, como a sociedade de forma geral pode contribuir na questão do reaproveitamento de alimentos, já que muita coisa é jogada fora?

A gente tem que trabalhar o conhecimento, mudar a cultura e fazer com que as pessoas entendam que a comida não necessariamente tem que estar com um aspecto que as pessoas entendem como se fosse o único aceitável, porque foi imposto esse padrão: a banana tem que ser assim, a manga tem estar nesse formato e quando está fora desse padrão imposto é como se perdesse valor nutricional, o que não é o caso. Mas a gente entende que a questão do desperdício não está só em casa, tem muita perda também na plantação, no transporte, então precisamos mudar essa cadeia, mudar a forma como a gente produz e distribui o alimento.

De que forma?

Pensar em cadeias mais locais, produções mais agroecológicas, numa produção que não tenha tanta perda e, com isso, incentivar o consumo e o preparo do alimento inteiro com talos, cascas, sementes, que é o trabalho que eu acabo fazendo muito.

Comente um pouco sobre o Programa Bela Infância nas escolas. Como surgiu a ideia?

Agora estou com um projeto novo chamado Comida e Cultura que é um desdobramento do Bela Infância. Com este programa eu trabalhei em algumas escolas públicas e privadas do Rio e São Paulo. Agora, o Projeto Comida e Cultura é um projeto de formação de educadores para que eles possam implementar na educação alimentar o conceito de uma culinária saudável também em sala de aula, de uma maneira multidisciplinar. Então, de repente, não é preciso criar uma disciplina de alimentação, mas, que os professores de ciências, português, matemática possam implementar conceitos da educação alimentar nas escolas dentro do conteúdo dessas matérias. Começamos esse projeto no início deste ano em duas escolas de São Paulo, a EMEI Dona Leopoldina, na Vila Leopoldina, e a Camino School.

Você fala em alimentação saudável e sustentável. Essa palavra é muito forte atualmente, mas existem muitas definições. Com que definição de sustentabilidade você trabalha?

Quando a gente fala de sustentabilidade é algo que possa sustentar vida. Hoje em dia, a gente está muito dependente de uma certa agricultura, de uma certa produção e um consumo que é muito mais destrutivo de vida: de vida no solo, na fauna, na flora e, quando parte para o consumo, de ser humano. A gente sabe que o consumo de comida processada é muito maléfico para nossa saúde, quando frequente. Então, a minha definição de sustentável é isso: uma comida pela vida e para a vida. E isso tem que estar contemplado na cadeia inteira, desde a forma como a gente produz. Eu sou uma pessoa que critico bastante as monoculturas que a gente sabe que é devastante para o solo e também existem muitos problemas sociais relacionados a isso. Sou a favor da agroecologia que realmente é a agricultura voltada para a vida, que mantém a vida do solo, que mantém a vida da terra, que mantém a vida dos animais e das pessoas que produzem comidas que são saudáveis para a nossa saúde. Então, essa é minha definição de sustentabilidade: comida pela vida.

Você vem de uma família de músicos. Como surgiu o gosto pela gastronomia? Tem alguém que te inspira?

O gosto pela gastronomia foi muito por essa vontade de transformação pessoal. A comida transformou muito a minha vida depois que parei de consumir certos alimentos. E aí quis entender porque isso aconteceu. Então, eu fui estudar nutrição e culinária porque, de uma maneira ou de outra, a gente come melhor quando cozinha o próprio alimento. Então, cozinhar é uma forma muito libertadora, traz muita autonomia e saúde nesse sentido. Decidi cozinhar por essa transformação que a alimentação teve na minha vida, aí estudando nutrição eu também quis compartilhar isso com mais pessoas. Tem gente que nasce com esse dom de cozinhar, mas pra mim foi pela necessidade de aprender a cozinhar para transformar minha vida.

Com quantos anos começou?

Tinha uns 18 anos quando comecei a cozinhar para mim.

Quem gosta mais de cozinhar, a Flora, sua mãe, ou o Gil?

Hoje em dia minha mãe, com certeza. Mas meu pai já cozinhou muito.

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